domingo, 2 de outubro de 2011

MEMÓRIAS DE UM GUARDA-REDES

Episódio 15 – AS DESPEDIDAS NA ESTAÇÃO DE CASA BRANCA

Antes de entrar na história de hoje, gostaria de narrar duas situações com que me deparei há bem pouco tempo nas ruas do Escoural, que embora em ocasiões diferentes, têm no fundo o mesmo significado.

Numa das vezes, não há muito tempo, ia eu beber o meu café da manhã, cruzei-me com um senhor já de alguma idade que eu conheço há já muito tempo, mas de quem francamente não sei o nome. Esse senhor ia acompanhado pela neta, uma pequerrucha de seis ou sete anos. Ao cruzarmo-nos desejámos um bom dia, e eu por hábito e costume cumprimentei a menina com um “Olá princesa”. Tínhamo-nos afastado cerca de dois ou três passos, ouvi a pequenita perguntar ao avô quem era aquele homem, ao que o avô respondeu: “- é o Vítor, o guarda-redes do Escoural –“.

Noutra ocasião, aconteceu uma situação idêntica, sendo desta vez uma avó com o seu neto. Cumprimentámo-nos quando nos cruzámos, tendo eu cumprimentado o pequenito com um - “Olá campeão, estás bom?”- e repetiu-se mais ou menos a mesma cena, do miúdo perguntar à avó quem era aquele homem, tendo a senhora respondido : “- então não sabes, é o Vítor, o jogador da bola, o nosso guarda-redes - “ .

Perante estas situações, e outras mais que se tornariam exaustivas aqui narrar, apraz-me verificar que aos olhos de muitos Escouralenses, ainda sou considerado como o “eterno guarda-redes” do Escoural, estatuto esse que me deixa muito grato, e imensamente honrado.

Mas vamos lá à memória de hoje, onde mais uma vez fica bem patente, o cuidado que os meus colegas e amigos Escouralenses tinham, de me fazer sentir bem e de me fazer sentir em casa, uma vez que para eles e na história de hoje em particular, já bastava o facto de vir de longe para fazer parte da equipa, quanto mais sentir-me “abandonado”. Mais lá para a frente já irão perceber o porquê.

Havendo futebol ao sábado, havia sempre a hipótese de ficar no Escoural, e só voltar para casa no dia seguinte, mas quando os jogos eram ao domingo essa hipótese de maneira alguma se colocava, pois o dinheiro não nascia nas árvores, e segunda-feira era dia de labuta. Assim sendo, jogo ao domingo era sinónimo de “devolução” para a Baixa da Banheira no mesmo dia, logo, tinha de apanhar o comboio fosse à hora que fosse.

Obviamente algumas das deslocações nos jogos fora, eram um pouco mais longínquas, o que é absolutamente normal no mundo do futebol, até mesmo nos campeonatos distritais. Quer isso dizer que nestes casos chegávamos naturalmente mais tarde, e se pelo caminho parássemos para aconchegar o estômago, claro que, ainda mais tarde chegávamos.

Mas isto tudo (perguntam vocês) a propósito de quê?

A propósito… das várias ou mesmo muitas vezes, que perdi o comboio das oito e vinte da noite.

A propósito… de depois só ter comboio às dez horas da noite, comboio esse que era utilizado por muito poucos passageiros, devido à sua hora tardia … e não só.

Se no verão ainda havia pessoas que utilizavam o comboio das dez por opção (até porque o bom tempo convidava a deitar tarde), no Inverno com a chuva e o frio, só era utilizado em último recurso, e só por quem tinha mesmo disso necessidade, e acreditem que era preciso também ter alguma coragem. Não só pelo tempo desagradável (chuva, vento e frio), mas também pelo facto, de não me estar a referir a um comboio com as normais comodidades para uma viagem mais ou menos longa. Estou-me pois a referir a uma automotora velha, com bancos em madeira e bastante desconfortáveis, e até por vezes com janelas semi-abertas, que devido a avaria de forma alguma se conseguiam fechar completamente, deixando entrar o frio e a chuva. Este comboio só tinha uma coisa boa, como parava em todas as estações e apeadeiros até ao Barreiro, não me obrigava a mudar para outro, no Pinhal Novo.

E perguntar-me-ão: - mas a que propósito vem a automotora das dez da noite? -.

É aqui que a história de hoje começa finalmente a fazer sentido, e situa-se a partir do momento em que passei a ser o único “resistente” que vinha da Baixa da Banheira, já não tendo portanto a companhia dos irmãos Rabino.

Se no comboio das oito e vinte da noite não me faltava companhia, quer no caminho para Casa Branca (à boleia ou camioneta da carreira), quer na estação, ou ainda no comboio até ao Barreiro (havia sempre um bom grupo de “emigrantes”), tal não acontecia na automotora das dez, onde cheguei a estar sozinho na estação à espera que chegasse a hora do comboio, e a rezar a todos os santinhos para que não se atrasasse.

Pois bem, as conversas são como as cerejas, e numa daquelas conversas de assuntos banais em que tudo vem à baila, comentei exactamente essa situação no Escoural com colegas de equipa e amigos, até em jeito de brincadeira, dizendo que ali ficava só e abandonado, mas que pelo menos a estação de Casa Branca ficava só para mim.

Mas como os Alentejanos não brincam em serviço, a partir desse dia, sempre que o Vítor perdia o comboio das oito e vinte, havia uma “legião” de colegas e amigos que, de carro ou motorizada, quer fossem residentes no Escoural, ou fossem de Montemor (colegas de equipa), lá acompanhavam o Vítor até Casa Branca para o comboio das dez da noite, e ninguém arredava pé sem que a automotora partisse.

Uma vez a automotora teve uma avaria (pudera, já tinha idade para museu), e só partiu cerca das onze e meia da noite, pois ali ficaram todos eles a fazer-me companhia, embora eu os tentasse convencer a irem para suas casas. Só por curiosidade, nesse dia cheguei a casa perto das duas da manhã … mais morto que vivo.

Mas há mais!... Nalgumas dessas despedidas aconteceu que, porque tínhamos feito um bom resultado, ou porque o lanche tinha sido melhorado, alguns dos meus colegas e amigos já estavam com um “grão na asa”, como tal, soltava-se-lhes a “saudade lusitana” quando a automotora partia, e era de tal forma o alarido e algazarra da despedida do “até p´rá semana”, que mais parecia a despedida de um emigrante de “até p´ró ano”. Quantas vezes, as poucas pessoas que estavam dentro da automotora, foram à janela para se inteirarem do que ali se passava, pensando talvez que toda aquela gente não batia bem da cabeça, e que aquele que tinha acabado de entrar na automotora, também não deveria ser melhor.

Pois é, foi mais uma história de amizade e respeito, e é tão gratificante recordá-la, e mais gratificante ainda é poder compartilhá-la convosco, porque possivelmente alguns dos que estão a ler este artigo, também lá estiveram nessas despedidas, retirando algum tempo que seria devido às suas famílias, dispensando-o àquele puto que vinha da Baixa da Banheira para dar uns “frangos” e levar umas “caneladas”, também ele retirado ao convívio dos seus, para com todo o prazer e orgulho vir defender as cores do nosso Escoural .

Despeço-me até à próxima história com AQUELE ABRAÇO.

VITOR RANGEL

vrangel@netcabo.pt

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