terça-feira, 6 de dezembro de 2011

MEMÓRIAS DE UM GUARDA-REDES

Episódio 16 - FAUSTINO, O TESOUREIRO

Como já se devem apercebido, a maior parte das memórias que eu tenho aqui escrito, não têm a ver directamente com o futebol, mas sim com toda a vivência que ao longo dos anos (já lá vão trinta e sete), tenho tido com as gentes do Escoural. Assim sendo penso que o título “Memórias de um guarda-redes”, deveria ser mudado para “Memórias de um puto que vinha da Baixa da Banheira para dar uns frangos, tendo por cá ficado, e que ao fim deste tempo, como já não pode jogar futebol, começou a chatear a cabeça aos Escouralenses com as suas memórias”. Ena pá, mas que grande título. Só para o título seria preciso meia página do jornal. Não, esqueçamos, e vamos deixar tudo como estava.

Assim sendo, vamos lá à memória de hoje.

Esta história leva-nos aos inícios da minha relação com o Escoural, eu diria mais, e se a memória não me falha, leva-nos mesmo aos primeiros anos da minha chegada.

Permitam-me lembrar que o meu “ordenado” no Escoural resumia-se ao bilhete do comboio, acrescido do almoço e lanche pagos pelo clube (ou a convite de alguém). Bastante mais tarde, e quando o clube tinha disponibilidade, o bilhete do comboio foi substituído pelo valor da gasolina do carro. Ou seja, naquela época, eu e os manos Rabino éramos os jogadores “mais caros” do clube. De vez em quando, lá havia um adepto de mais posses que perdia a cabeça, e a título de prémio por uma boa exibição ou um bom resultado, lá me dava 50 ou 100 escudos, o que traduzido em euros, daria actualmente 25 ou 50 centimos (estão-se a rir ???... “granda” luxo na altura!!!).

Mas isto vem a propósito, do facto de a pessoa que nos fazia o pagamento das passagens ser o tesoureiro do clube, que na altura era o Ti Faustino, um velhote muito simpático, bem disposto, e sempre com um sorriso enternecedor.

O Ti Faustino, foi uma das muitas pessoas com quem logo de início tive uma relação muito especial, pois sempre senti da parte dele um apoio e um carinho muito particular.

Quantas vezes depois do jogo, andava ele à minha procura para me dar o dinheiro das passagens, para que eu não viesse “a falar sozinho” para a Baixa da Banheira, pois ele sabia que o dinheiro no meu bolso era escasso, como tal, fazia mesmo muita falta.

Mas o que me levou de facto a escrever esta história vem a seguir.

O Ti Faustino, com o passar do tempo, fortaleceu o carinho que tinha por mim de tal modo, que já me considerava um Escouralense, e a certa altura disse “-Já és nosso, tens de cá ficar, tens de casar com uma rapariga cá da terra-“.

Eu percebi muito bem que ele queria que eu criasse raízes, pois a vontade dele era que eu fosse para sempre Escouralense, que nunca mais deixasse esta vila.

Até aqui tudo bem, até porque eu ainda nem sequer namorava, estava bem longe dessa ideia, e a única rapariga que nessa altura me fazia perder a paciência, era a minha fã número um, a Cila, que tinha na altura talvez nove ou dez anos. Sim, a tal do ramo de rosmaninho, e que era endiabrada, reguila, irrequieta, eléctrica e acima de tudo “chata como a potassa”, a quem só nos apetecia dizer: - Põe-te lá quieta, porra!!!-. Lembram-se dela?... Pois, essa mesmo.

Mas voltemos à história.

Só que os anos foram passando, e o Ti Faustino ia repetindo o desejo, até ao dia em que me casei, e aqui é que “a porca torceu o rabo”.

É que, quando o Ti Faustino repetiu esse seu desejo ao pé da minha esposa, a Delfina, não calculam o “trinta e um” que ele me arranjou.

Não foi ele que a ouviu, fui eu que a aturei durante dias, semanas e até meses. Eu penso (aliás, tenho a absoluta certeza) que ainda hoje, ela não gosta muito de falar desse assunto.

Seja como for, tem-se cumprido em parte o desejo do Ti Faustino, pois eu representei o Estrela até aos quarenta e três anos; comprei uma casita no Escoural onde estou quase todos os fins-de-semana e passo a maior parte do tempo das minhas férias; fortaleci os meus laços de amizade (diria mesmo familiar) com os Escouralenses em geral; o meu filho não nasceu no Escoural, mas é como se tivesse lá nascido, pois são de lá os seus grandes amigos; e a minha esposa, embora seja de Lisboa, já não diz que “vai comprar chouriço ao Zé Ricardo”, passou a dizer que “vai à do Zé comprar linguiça e bico”, além de que aprendeu a fazer uma óptima açorda à alentejana, uma apetitosa sopa de cação, e um saboroso assado de borrego. Só é pena ainda não se ter especializado na sopa da panela, mas enfim … ninguém é perfeito.

Como vê Ti Faustino, onde quer que esteja se me puder ouvir, o seu desejo em parte cumpriu-se, e quero continuar a fazê-lo cumprir, pois esta é a minha forma de o homenagear.

Foi mais uma história, esta um pouco mais pequena que algumas outras, mas suficientemente grande para honrar a memória de alguém, que não quero que me saia da memória.

Do Ti Faustino, ficou há muito a eterna saudade.

Despeço-me até à próxima história com AQUELE ABRAÇO.

VITOR RANGEL

vrangel@netcabo.pt

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